Nestes mais de 30 anos de história da aids, muitos avanços e descobertas ocorreram relacionados aos medicamentos antirretrovirais, tratamento, conhecimento do HIV e suas manifestações sistêmicas. Entretanto, em relação ao comportamento social frente à pessoa vivendo com HIV/AIDS, muito temos que mudar e melhorar. É uma doença que vai além do comprometimento biológico do indivíduo, envolve estigmas, preconceito, comportamento social e marginalização.
A maior barreira que grande parte das pessoas vivendo com HIV/AIDS encontra em seu dia a dia, não é ter que tomar os antirretrovirais todos os dias, enfrentar os efeitos colaterais dos mesmos ou lembrar que tem uma doença incurável. A maior dificuldade é enfrentar o preconceito, que embora mais sutil, ainda existe.
Realizando o tratamento odontológico diariamente em um Centro Especializado para DST/AIDS não é incomum o paciente relatar situações de seu cotidiano, quando se sente segregado, inseguro e com medo da rejeição por ser soropositivo. Por este motivo, muitas vezes preferem ocultar seu diagnóstico ao parceiro, amigo, familiar ou mesmo ao próprio cirurgião-dentista.
Muitos colegas, infelizmente, acabam evitando o tratamento destes pacientes, por não se sentirem seguros em relação ao conhecimento dos aspectos clínicos da doença e suas complicações, o receio de sofrer um acidente ocupacional e a dificuldade em lidar com o próprio preconceito, gerado em torno da aids.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2012, dentre os infectados, aproximadamente 1,6 milhão de pessoas morrem, por ano, em decorrência da aids. Já existem mais de 35 milhões de pessoas vivendo com HIV/AIDS, no mundo.
Entre janeiro de 2005 e junho de 2016, cerca de 410.000 casos de aids foram registrados no Brasil, de acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde.
O primeiro diagnóstico da doença no país foi no início dos anos 1980. A visão que se tinha, nessa época, era de uma doença contagiosa, altamente letal que acometia principalmente homens que faziam sexo com homens (HSH), usuários de drogas injetáveis e pessoas que haviam recebido transfusão de sangue e de hemoderivados contaminados.
Atualmente a epidemia assumiu outro perfil, com crescimento da infecção em jovens de 15 a 24 anos e em adultos com 50 anos ou mais, tanto em homens quanto mulheres. A terapia antirretroviral (TARV) representou um avanço impressionante nas duas últimas décadas.
A partir da monoterapia com a zidovudina (AZT), ainda nos anos 1980, drogas e classes novas e mais potentes e seguras foram introduzidas na prática clínica, com benefícios que se traduziram em níveis de sucessos virológico crescentes e duradouros, transformando uma epidemia letal em mais uma doença controlável. Atualmente são quase 30 drogas antirretrovirais (ARV) licenciadas para uso clínico.
E qual o papel do cirurgião-dentista no acolhimento e atendimento odontológico aos pacientes vivendo com HIV/AIDS? Como qualquer outro usuário de serviços odontológicos, o paciente deve ser atendido da melhor forma possível. Sempre digo que o atendimento já é iniciado no primeiro momento em que o paciente adentra o consultório, o “olho no olho”, o cumprimento, o acolher, para que assim seja estabelecido um vínculo de confiança profissional-paciente, demonstrando preocupação e cuidado com a sua saúde integral.
Os procedimentos odontológicos são semelhantes aos que são realizados no tratamento odontológico convencional, atentando-se às implicações da condição sistêmica do paciente nos cuidados orais. Para que o cirurgião-dentista atue com segurança é de suma importância realizar uma anamnese detalhada, ter conhecimento das comorbidades comumente associadas à doença de base (HIV/AIDS), tais como dislipidemia, hipertensão, diabetes, disfunção hepática, miocardiopatia, nefropatia e neuropatia periférica e dos medicamentos de uso contínuo, dentre eles o esquema antirretroviral (ARV) utilizado. Sempre seguindo as normas de biossegurança como deve ser feito para todo e qualquer paciente, seja ele soropositivo ou não.
Vale lembrar que muitas pessoas não sabem que estão infectadas pelo HIV, e as manifestações bucais podem representar os primeiros sinais clínicos da doença, por vezes antecedendo as manifestações sistêmicas. Esse fato aponta para o importante papel do cirurgião-dentista na suspeita da infecção pelo vírus, no diagnóstico e tratamento dessas manifestações bucais e no correto encaminhamento ao infectologista.
A candidíase oral é um marcador clínico precoce de imunodepressão grave, e foi associada ao subsequente desenvolvimento de pneumonia por P. jirovecii. Diarreia crônica e febre de origem indeterminada, bem como leucoplasia pilosa oral, também são preditores de evolução para a aids.
O aparecimento de infecções oportunistas e neoplasias é definidor da Síndrome da Imunodeficiência Humana (AIDS). Dentre elas, destacam-se: pneumocistose, neurotoxoplasmose, tuberculose pulmonar atípica ou disseminada, meningite criptocócica e retinite por citomegalovírus.
As neoplasias mais comuns são Sarcoma de Kaposi, linfoma não-Hodgkin, além de câncer de colo de útero, em mulheres jovens. Nessas situações, a contagem dos linfócitos LT-CD4 está abaixo de 200 células/mm3, na maioria das vezes. Quando o paciente apresenta lesões orais associadas à carga viral detectável, linfócitos LT-CD4 abaixo de 200 células/mm3 podem indicar falha terapêutica ou não aderência do paciente ao TARV.
Outra questão que acredito ser o maior receio do colega cirurgião-dentista em relação ao atendimento odontológico aos pacientes com HIV/AIDS é o acidente ocupacional.
Sabe-se que o risco de transmissão do vírus quando profissional de saúde se acidenta com material perfuro cortante contaminado com o sangue do paciente soropositivo é de aproximadamente 0,3%. No caso de exposição de mucosas, este risco é de 0,1%. A exposição ocupacional é considerada uma emergência médica, uma vez que a quimioprofilaxia deve ser iniciada o mais rapidamente possível, preferencialmente nas primeiras horas após o acidente e, no máximo, até 72 horas.
A prevenção é a melhor forma de reduzir os riscos de uma exposição ocupacional ao vírus. Reforço a importância de o colega seguir as normas de biossegurança e realizar o tratamento com calma, evitando distrações.
Para concluir, deixo uma reflexão do Betinho (Hebert de Souza), que foi sociólogo, ativista dos direitos humanos brasileiro e criador do movimento de defesa dos direitos dos portadores do HIV. Betinho contraiu a doença após uma das muitas transfusões sanguíneas as quais era submetido devido à hemofilia. “É fundamental, portanto, reafirmar que este vírus não é mortal. Mortais somos todos nós. Isso sim é o inelutável e faz parte da vida”.
Tathiana Marinho Lopes
Cirurgiã-dentista. Pós-Graduada em Odontologia Hospitalar e em Pacientes com Necessidades Especiais. Cirurgiã-dentista do Centro de Referência DST/AIDS da Prefeitura de São Paulo. Cirurgiã-dentista do Centro de Especialidades Odontológicas da Prefeitura de São Paulo.