Por: Vanessa Navarro
Caracterizada por uma reação autoimune nas bainhas de mielina dos axônios, a esclerose múltipla é uma doença neurológica, desmielinizante de etiologia desconhecida. É uma condição crônica, progressiva e imprevisível, onde as manifestações vão ocorrer de acordo com a área lesada. “Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas no mundo são portadoras desta doença; sendo, segundo a Associação Brasileira de Esclerose Múltipla, mais de 30.000 indivíduos no Brasil”, alerta a cirurgiã-dentista e professora colaboradora do curso de especialização em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais da ABORJ, Bruna Picciani.
De acordo com a profissional de saúde bucal, apesar da causa não estar esclarecida, sabe-se que há participação de fatores genéticos e ambientais para o surgimento e exacerbação da doença. Dentre os fatores ambientais, destacam-se as infecções virais, como herpesvírus tipo 6, vírus Epstein-Barr e retrovírus endógeno humano. Ocorre com maior frequência em mulheres jovens, entre 20 e 40 anos, que vivem em países de clima frio.
A doença pode ser classificada de diversas formas, de acordo com os achados clínicos caracterizados pela área de acometimento do sistema nervoso central. O paciente pode apresentar fases de surtos, sendo episódios agudos de disfunção neurológica com duração igual ou superior a 24 horas, precedendo um período de estabilidade clínica de no mínimo 30 dias, na ausência de febre ou infecção. “Além destes, os sintomas iniciais mais comuns englobam fadiga, visão turva, diplopia, perda da visão em um olho, parestesia, sensação de formigamento, vertigem, perda de equilíbrio, ataxia, espasticidade, incontinência urinária, falta de memória, irritabilidade e depressão”, explica Bruna Picciani.
O diagnóstico é baseado essencialmente na história clínica, identificando episódios de surto e remissão, associado ao exame físico e neurológico. Exames de ressonância magnética (RM) e análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) podem auxiliar no diagnóstico. A RM é considerada o principal exame para o diagnóstico precoce, demonstrando a presença de disseminação do processo desmielinizante. A cirurgiã-dentista explica que, atualmente, o diagnóstico é realizado a partir dos critérios de McDonald, revisados em 2010, onde o uso da RM ganhou força e os critérios diagnósticos foram simplificados, resultando em elevado grau de especificidade e sensibilidade, permitindo tratamento precoce e melhor qualidade de vida ao paciente.
Esclerose múltipla e a saúde bucal
Bruna Picciani defende que o cirurgião-dentista deve conhecer a doença, sabendo que a condição é imprevisível e sem cura, podendo apresentar períodos de surto e remissão, frequentemente entre os 20 e 35 anos. “Alguns pacientes, durante a consulta, podem se queixar de dores faciais atípicas, fadiga, formigamento, dormência nas extremidades, problemas visuais, e o dentista pode suspeitar da doença. Conhecendo os sinais e sintomas da esclerose múltipla, o cirurgião-dentista pode ajudar na detecção precoce, sendo viável a utilização de medicações para controle da doença pelo neurologista”.
No paciente já diagnosticado, o plano de tratamento odontológico deve ser elaborado de acordo com a fase da doença e com as manifestações presente no paciente, constituindo um tratamento individualizado. “Além disso, é essencial conhecer a medicação utilizada pelo paciente e seus efeitos colaterais”, atenta a também especialista em Estomatologia.
A especialista ainda esclarece que é contraindicado o atendimento em períodos de surto da doença, só podendo ser realizado tratamento de urgência, com liberação médica e possível ajuste da medicação do paciente. O momento mais adequado para tratamento é durante os períodos de remissão. “A fase da doença vai definir o plano de tratamento, dependendo do nível de fadiga e deficiência motora. Quanto mais avançada a doença, mais difícil será a realização do tratamento odontológico. Deste modo, o cirurgião-dentista deve realizar ações preventivas, para evitar procedimentos mais invasivos em fases avançadas da doença”, esclarece a cirurgiã-dentista.
A anamnese minuciosa é imprescindível para o início do tratamento, sendo necessário conhecer o estágio da doença, o grau de comprometimento da doença e as medicações utilizadas pelo paciente. “Antes de iniciar o tratamento, o médico do paciente deve ser contatado, de preferência deve emitir um parecer detalhado sobre a doença, que servirá de orientação para o cirurgião-dentista. Alguns pacientes podem necessitar de auxílio para locomoção e higiene oral, podem apresentar fadiga com piora na parte da tarde, falta de visão e memória. Deste modo, a presença dos familiares é substancial para o sucesso do tratamento, que deverá ser mantido durante os cuidados diários”, elucida a especialista. “Os medicamentos anticolinérgicos e antidepressivos tricíclicos podem causar hipossalivação ou ardência oral, necessitando de substitutos salivares e tratamento da ardência. As drogas imunossupressoras predispõem o aparecimento de infecções fúngicas e/ou virais na mucosa oral”, completa.
É muito importante lembrar que o cirurgião-dentista precisa ter contato direto com outros profissionais de saúde envolvidos nos cuidados do paciente, e que só assim será possível realizar um atendimento de qualidade. “Com o avanço no diagnóstico e tratamento da esclerose múltipla, há um aumento na qualidade de vida e sobrevida destes pacientes, sendo essencial o cirurgião-dentista participar da equipe multiprofissional de atendimento a este paciente, reduzindo os problemas orais, melhorando a autoestima, interferindo diretamente na saúde geral”, defende Bruna Picciani.
O dentista como agente conscientizador
Estudos apontam a relação da doença com maior prevalência de cáries e outros problemas orais. A cirurgiã-dentista Bruna Picciani enfatiza que a incapacidade motora, dificuldade visual, presença de tremores e parestesia dificultam a adequada higiene oral do portador de esclerose múltipla, propiciando a instalação de lesões cariosas e/ou doença periodontal. “Agravando este quadro, ainda há a presença de hipossalivação, causada por alguns medicamentos utilizados no tratamento da doença”.
Os altos índices de cárie e doença periodontal refletem a falta de motivação e a incapacidade física e neurológica para realização do autocuidado, além das alterações psicológicas que ocorrem no portador de esclerose múltipla. “A família é peça fundamental para o tratamento odontológico, pois eles irão auxiliar durante e após o atendimento, realizando os cuidados essenciais para manutenção da saúde oral deste paciente. Os cuidadores devem receber instruções por escrito e treinamento para realização de adequada higiene oral”, destaca a especialista.
Atendendo o paciente com esclerose múltipla
A cirurgiã-dentista Bruna Picciani apresenta dicas preciosas para que o cirurgião-dentista realize o atendimento ao paciente com esclerose múltipla.
- Realize anamnese minuciosa, sendo essencial ter conhecimento sobre a fase e manifestações da doença, assim como sobre a medicação em uso.
- Para maior esclarecimento sobre o quadro geral do paciente, solicite parecer médico.
- Verifique se existe a necessidade de responsável para auxiliar durante o atendimento e para realização dos cuidados orais em domicílio.
- Avalie a presença de hipossalivação e alterações na mucosa oral, assim como a presença de candidíase e/ou herpes.
- Em casos de hipossalivação, realize instruções para o aumento do fluxo salivar e, se necessário, prescreva substitutos salivares.
- De acordo com a incapacidade física, indique escova elétrica.
- Em casos de alto índice de cárie, prescreva bochecho com fluoreto de sódio a 0,05%.
- Para medidas preventivas, oriente o paciente e/ou cuidador sobre a importância das visitas regulares ao dentista, a fim de evitar procedimentos mais invasivos na fase avançada.