Segurança do paciente em ambientes odontológicos

Segurança do paciente em ambientes odontológicos

A segurança do paciente é um tema que deve ser tido como prioritário no âmbito odontológico.

A cirurgiã-dentista Isabela Castro, especialista e mestre em Odontopediatria, especialista em Pacientes com Necessidades Especiais e membro do Núcleo de Segurança do Paciente – Clínica São Vicente da Gávea (RJ), fala sobre esse assunto tão delicado e apresenta algumas dicas para evitar possíveis acidentes em clínicas e consultórios odontológicos.

Por: Vanessa Navarro

Local Odonto – Quando se fala em segurança do paciente no ambiente odontológico, a primeira coisa que vem à mente é a questão da biossegurança, porém, outros eventos adversos também são decorrentes e preocupantes nos consultórios e clínicas odontológicas. Quais são os acidentes mais comuns de acontecerem nas clínicas e consultórios odontológicos?
Isabela Castro – Há uma dispersão de coleta de dados/medidas, quando pensamos em erro relacionado ao cenário odontológico. Não há na Odontologia, até onde pude compilar, processo de medição/ acompanhamento de eventos.
Na verdade, ainda não há sequer rastreamento de processo e de risco, itens que devem ser criados, em tese, previamente ao processo de tratamento do evento. Por outro lado, na literatura mundial, os principais eventos estão relacionados aos procedimentos da linha cirúrgica, dentre os quais, podemos citar: exodontia do dente errado, acidentes com fratura de agulha, falha em prescrição e/ou indicação de profilaxia antibiótica, infecção de sítio operatório, dano ao nervo, deslocamento de dentes ou insumos operatórios para o seio maxilar, dentre outros.
Não há registros estatísticos de porcentagem de ocorrência dos eventos, pois os casos publicados são descritos como casos clínicos.
Enquanto a Odontologia não se preocupar em idealizar um processo de trabalho e um indicador de performance clínica, o cenário será sempre favorável ao erro.


Local Odonto –
 Qual é a importância da notificação de possíveis eventos adversos no âmbito odontológico? Como o cirurgião-dentista deve proceder em casos de acidentes?
Isabela Castro – A notificação de eventos adversos é fundamental para conduzir a equipe no caminho da construção da cultura de segurança e para a rastreabilidade de informações acerca do erro para reflexão, melhoria de processo e mitigação de erro.
Diante do acontecimento de um evento, tendo a clínica um sistema de gestão, o cirurgião-dentista deve realizar um fluxo chamado “notificação de evento”, que consiste no registro, análise e tratamento do evento em questão pelo setor/pessoas responsáveis.
Destaca-se que tal tratamento não possui caráter punitivo, mas de melhoria de processo, para que o número de ocorrências seja diminuído.


Local Odonto –
 Qual é a importância de promover e apoiar a implementação de iniciativas voltadas à segurança do paciente em diferentes áreas da atenção, organização e gestão de serviços de saúde?
Isabela Castro – Um ambiente seguro é aquele cujo cenário foi pensado e rastreado para mitigação de erros e geração de cuidado de maior qualidade assistencial.
A segurança é um quesito fundamental, não importa a complexidade do cuidado envolvida. Dentistas estão inclinados a raciocinar contra si mesmos, quando consideram em seu planejamento apenas a lógica da complexidade. Sob essa lógica equivocada, os consultórios odontológicos são tidos como locais seguros, já os hospitais são considerados extremamente perigosos.
Essa visão é deturpada e precisa acabar. Existe uma série de perigos relacionados ao cenário odontológico, daí a importância do levantamento e rastreamento de processo.


Local Odonto – 
Qual é a importância de o cirurgião-dentista estar alinhado também às necessidades dos grupos mais vulneráveis, tais como pacientes idosos ou com necessidades especiais? Quais são as providências a serem tomadas para atender esse público de maneira eficaz e segura?
Isabela Castro – Os grupos vulneráveis são os pacientes que apresentam necessidades especiais para seu atendimento, seja de caráter permanente ou transitório. Idosos e pacientes com necessidades especiais se encaixam perfeitamente nesse grupo.
Acredito que esses pacientes requerem um olhar ainda mais atento, do ponto de vista da segurança, uma vez que a sua patologia de base, a existência de comorbidades associadas e o uso de polifarmácia podem constituir fatores que modulam completamente seu atendimento e indicação de terapia.
O cirurgião-dentista que presta atendimento a esses grupos precisa criar um processo de trabalho bem fundamentado e seguro, que vai desde o agendamento, o levantamento de informações médicas, o contato com o médico do paciente, “maestro” do plano terapêutico, para posterior planejamento e decisão clínica.
Cabe salientar que é muito importante considerar a natureza de terapias da área médica e afins nas quais o paciente encontra-se envolvido, para que sua proposta esteja alinhada ao plano da equipe.
Além disso, existe um movimento mundial forte chamado “What matters to you?”, que incentiva os profissionais da área médica a chamar os pacientes e suas famílias para os processos decisórios de seus atendimentos e estabelecimento de metas para a terapia.
Nesse ponto, cabe uma reflexão: estamos indicando terapias seguras e indicadas para quem? Para o paciente ou para o próprio cirurgião-dentista?
Somos atropelados, muitas vezes, pelo ritmo de nossas atividades e alocamos terapias e pacientes em blocos, desconsiderando suas necessidades individuais, além de os seus desejos e visão para sua própria vida. Essa temática é extremamente complexa e abstrata, mas está na hora de começar a pensar nisso.


Local Odonto –
 Qual é a melhor forma de ampliar a segurança do paciente e da própria equipe em ambiente odontológico?
Isabela Castro – A melhor forma é realizar um levantamento de processos e, posteriormente, seu mapeamento, para localizar os riscos envolvidos ao seu processo de trabalho.
É importante começar a desenvolver pequenas estratégias de gestão, por exemplo, identificar qual é o seu negócio e qual é o seu perfil de paciente. Assim, seu levantamento fica mais fidedigno a sua realidade.
É comum os colegas usarem ferramentas prontas de rastreamento disponíveis em canais de busca da rede mundial de computadores, no entanto, enquanto a ferramenta não for personalizada para o seu negócio, posso apostar que você ainda não o conhece, e não o conhecendo, não tem como gerar barreiras de mitigação de erro e ingressar em ritmo de geração de melhorias de processo.


Local Odonto – 
Além de educar o cirurgião-dentista sobre a segurança do paciente, é preciso ampliar o acesso da própria sociedade às informações relativas à segurança. Como essa ação pode ser feita?
Isabela Castro – Existem muitas Organizações relacionadas à segurança e gestão da qualidade, mas, no âmbito da Odontologia, apenas a Organização Nacional de Acreditação (ONA) manifestou interesse pela nossa área, por ter identificado um cenário que apresenta perigos relacionados ao seu processo.
A ONA lançou, em 2012, um manual de acreditação de serviços odontológicos. O objetivo desse material é incentivar a prática de acreditação entre os serviços dessa natureza e difundir a prática na sociedade. No entanto, para espanto de seus idealizadores, tal manual não teve boa aderência por parte dos dentistas.
Atualmente, existem apenas três serviços odontológicos recentemente acreditados, todos localizados no Estado do Ceará, gestão SUS. Esse é o retrato de nosso próprio conhecimento e interesse acerca do tema.
A difusão dessas informações, a meu ver, deveria partir do próprio dentista. Se nos estruturamos e melhoramos nossos processos, mitigamos os riscos relacionados e ofertamos serviços de mais qualidade para nossos pacientes, a onda desse movimento chegará à sociedade, que passará a conceber esse novo modelo como quesito básico na escolha de serviços odontológicos.
Fazendo uma analogia, esse é o modo atual de escolha dos consumidores quando precisam eleger um hospital para realizar uma cirurgia, por exemplo.
Atualmente, quando há uma matéria sobre a Odontologia nesse âmbito, infelizmente, versa sobre erro com dano e judicialização. A imagem do cirurgião-dentista fica fadada a artesão habilidoso e de pobre conhecimento médico, com grande fragilidade do ponto de vista da segurança.
Esse triste e assustador cenário mudará conforme a flexibilidade de pensamentos e prioridades do cirurgião-dentista, para assim apresentar a melhoria continua do seu processo.


Local Odonto – 
Quais são os passos a serem seguidos para prevenir possíveis acidentes no âmbito odontológico?
Isabela Castro – Algumas dicas simples podem ser de grande valia para o cirurgião-dentista entender e atuar em relação ao erro antes do seu acontecimento.

  • Conheça o seu negócio e seu cliente. Pergunte a si mesmo: para quem meu trabalho se destina? Quem é meu cliente principal? Tais questionamentos permitem a criação do perfil de clientela e do perfil epidemiológico
  • Olhe para o seu negócio e redija o seu processo em um papel. Por exemplo, se o seu negócio é atendimento em Odontogeriatria, pense no atendimento do idoso desde a ligação inicial para marcação da consulta até o momento da alta, que seria, respectivamente, a entrada inicial no processo e a saída final com a entrega do produto. Dessa forma, você será capaz de começar a visualizar o seu processo e os riscos relacionados a ele. Mais um exemplo, ainda na Odontogeriatria: um paciente ligou e marcou consulta com a sua secretária para uma moldagem de prótese total. No dia do procedimento, ele faz um evento de broncoaspiração do material de moldagem e saliva. Todos ficam nervosos no consultório, tendendo a “julgar” e culpabilizar o dentista pelo ocorrido. Eis um modelo de falha de processo e não falha humana.
    Se a secretária tivesse sido orientada/treinada para fazer algumas poucas perguntas no momento da marcação da consulta, ou mesmo se o dentista o tivesse conhecimento sobre as pequenas nuances de sua saúde, saberia que ele faz eventos de broncoaspiração com frequência, é acompanhado pela fonoaudióloga, faz uso de espessante para engrossar os líquidos que ingere e esteve internado recentemente por isso.
    Você deve estar se perguntando: “por que o paciente não me contou sobre isso”? Bem, tenho minhas teorias, mas a principal delas se deve ao fato de os pacientes não entenderem a relação dinâmica que a boca possui com os sistemas e a sua repercussão no global. Logo, em seu entendimento, essa informação não seria importante para um atendimento simples e meramente odontológico. Logo, cabe a você rastrear. Busque conhecer o seu negócio principal e o seu cliente, e se dedique intensamente a eles.
  • Comece a planilhar os resultados do seu negócio. Após escrever o seu processo, crie seus indicadores. Estes são números que mostram como vai o seu negócio. Você pode começar com planilhas simples de Excel, inserindo dados que são de extrema importância para registro.
    Não há modelos gessados, de modo que os indicadores do implantodontista serão completamente diferentes dos indicadores do odontopediatra.
    Conhecer seus números é dominar seu negócio e estar apto a criar estratégias para melhoria. Existe uma frase que diz: “O indicador indica UMA DOR”. Esse número é vital para você entender os pontos fortes e fracos, além de indicar as fragilidades que apontam para a necessidade de melhoria.
  • Analise criticamente seus indicadores. Olhe mensalmente seus números. Conforme já mencionado, eles têm muita informação a revelar, e tão informações irão guiar as suas estratégias.
  • Crie um fluxo de notificação de evento. Elabore, dentro da sua realidade, um formulário para estudar o evento ocorrido. Tenha em mente que seu objetivo é evitar que novos eventos aconteçam. Nesse momento, você já é capaz de entender que a maioria dos eventos ocorridos é classificada como evitáveis.
    Contagie sua equipe e envolva todos os colaboradores da sua clínica nesse processo, de modo que todos entendam o caráter de melhoria e não punitivo dessa nova atividade.

Até meados da década de 1980, era bem constrangedor relacionar custo/honorários com saúde. Esse assunto era tratado quase como um cochicho. Atualmente, o cenário da saúde mudou. A gestão entrou em cena, e vários modelos de negócios foram criados.
Diante dessa nova demanda e modelo de mercado, você pode ser o melhor na sua especialidade, mas se não desenvolver pequenas ferramentas de gestão, será fadado a navegar como um barco à deriva, engrossando a massa que reclama da Odontologia. Pense nisso.


isabelaIsabela Castro
Cirurgiã-dentista. Especialista e mestre em Odontopediatria. Especialista em Pacientes com Necessidades Especiais. Membro do Núcleo de Segurança do Paciente – Clínica São Vicente da Gávea (RJ). Coordenadora de Odontologia Hospitalar – Clínica São Vicente da Gávea (RJ). Avaliadora de acreditação IBES/ONA. Mestranda em Gestão em Saúde. Cursando a especialização em Melhoria IHI.

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