Confira a entrevista com o cirurgião-dentista Rodrigo Resende e saiba mais sobre a prescrição de medicamentos no âmbito odontológico.
Por: Vanessa Navarro
Local Odonto – A utilização de medicamentos é muito frequente na Odontologia. Quais são os grupos de medicamentos mais utilizados e indicados pelos profissionais?
Rodrigo Resende – Sem sombra de dúvidas, o fármaco mais utilizado pelo profissional de Odontologia são os anestésicos locais. É talvez incalculável o número de vezes que administramos tubete anestésico, no período de uma semana, dentro de nosso consultório. Seguidos assim, pela prescrição de analgésicos, anti-inflamatórios e antibióticos, porém, isso dependerá muito da especialidade odontológica do profissional.
Quando esses fármacos são utilizados corretamente, trazem grande benefício no controle da dor, durante, ou mesmo após as intervenções odontológicas, além de terem um auxílio importante no tratamento das infecções odontogênicas, como no caso dos antibióticos. Porém, com relação a isso, gosto muito de uma frase do livro do Malamed (2013), que diz: “Nenhuma droga é destituída de toxicidade. O potencial de toxicidade de uma droga está nas mãos do usuário”. Isso é a mais pura verdade quando o assunto é farmacologia. O conhecimento de farmacocinética e farmacodinâmica é de extrema importância, para que possamos evitar erros e aproveitar o que de melhor há nos medicamentos prescritos e/ou administrados.
Local Odonto – Qual é a importância de eleger um protocolo medicamentoso em Odontologia?
Rodrigo Resende – Segundo o famoso estudo publicado nos Estados Unidos em 1999, “To Err is Human: Building a Safer Health System”, cerca de 7 mil mortes por ano são atribuídas a erros de medicações. Estando incluindo erros de seleção de fármaco, administração e/ou interações medicamentosas.
Na Odontologia, sabemos que não há protocolos bem descritos, e isso faz com que muitas vezes cada serviço (ou mesmo cada profissional dentro de um mesmo serviço) tenha o seu próprio. Porém, em alguns casos, o protocolo adotado pelo profissional foi baseado em sua própria experiência clínica ou de terceiros, sem uma base científica prévia.
Ter um protocolo bem padronizado e específico para cada caso, seguindo uma base científica conceituada, poderia fazer com que alguns fatores fossem diminuídos, como a incidência de efeitos colaterais, o custo terapêutico do tratamento e os possíveis agravamentos clínicos que o paciente possa vir a apresentar.
Local Odonto – Qual é a importância da anamnese detalhada antes de qualquer tipo de administração medicamentosa dentro do consultório e antes de qualquer tipo de prescrição de medicamentos?
Rodrigo Resende – A meu ver, a anamnese é a parte principal e fundamental no que tange o tratamento odontológico, pois, é por meio dela que o profissional de Odontologia traça o perfil do paciente que será tratado sob sua total responsabilidade.
Por meio dela é possível planejar de acordo com as possíveis alterações que possam existir e, com isso, evitar possíveis complicações ou intercorrências durantes ou após a realização de procedimentos odontológicos, além de conseguirmos dar orientações necessárias ao nosso paciente.
Com essa simples etapa realizada ao início do tratamento, podemos evitar, por exemplo, que haja possíveis interações medicamentosas, ou mesmo casos de alergias, quando são prescritos e/ou administrado fármacos. Um exemplo da total importância da anamnese é a contraindicação do uso do anestésico local Articaína em pacientes que apresentam alergia comprovada a enxofre. Instrução descrita em artigos científicos e também na obra de Malamed (2013).
Porém, o que percebemos nos dias de hoje, é que não é dada grande importância à semiologia clínica. Essa coleta sistemática de dados parece estar sendo facultativa no ambiente odontológico. A simples avaliação dos sinais vitais do paciente (temperatura, frequência cardíaca, frequência respiratória e pressão arterial) pode ajudar a diagnosticar alterações que o paciente possa vir a apresentar, sendo fundamental quando nos deparamos com alguma emergência médica no consultório. Isso porque, caso haja alguma alteração nestes sinais vitais, o profissional saberá quais são seus valores basais.
Local Odonto – Quais são os cuidados essenciais a serem tomados antes da administração precisa de anestésicos locais? Qual é a melhor escolha na clínica odontológica?
Rodrigo Resende – O primeiro cuidado que o profissional deve ter ao escolher uma solução anestésica é conhecê-la. Quando falo “conhecê-la”, não é apenas superficialmente ou o que é relatado em palestras ou por outros profissionais. Para a escolha, devemos saber suas possíveis interações medicamentosas, doses máximas (recomendada pelo fabricante), tempo de ação, possíveis contraindicações, alterações fisiológicas, saber qual vasoconstritor está associado ao sal, e por aí vai.
Mas essa não é a realidade no dia a dia da clínica odontológica. Geralmente o profissional seleciona apenas uma delas e utiliza de uma forma global para todos os seus atendimentos e, em muitas das vezes, não tem o conhecimento necessário.
Segundo Malamed (2013), o profissional deve ter de dois a três tipos de anestésicos em seu consultório, escolhendo o melhor para cada caso a ser realizado. Sendo essa escolha sempre baseada em três itens principais: necessidade de obter menor ou maior tempo de anestesia, necessidade de hemostasia e, sem dúvida, o de maior importância, de acordo com as condições sistêmicas do paciente. Sendo o último, o fator de maior limitação nesta escolha.
O que também deve ser lembrado é que em muitas situações são utilizadas soluções com vasoconstrictores, e que esses muitas vezes limitam a quantidade do uso de anestésicos. Um exemplo disso é sua utilização em pacientes cardiopatas, onde a dose máxima de epinefrina deverá ser limitada 0,04 mg por consulta. Com isso, os vasoconstrictores presentes no mercado 1:50.000, 1:100.000 ou 1:200 000 deverão ser administrados, respectivamente, um, dois e quatro tubetes.
Local Odonto – Quando o cirurgião-dentista deve prescrever medicamentos? Como prescrever com segurança os anti-inflamatórios e analgésicos?
Rodrigo Resende – Segundo a Lei n. 5.081 de 24/08/1966, que regula o exercício da nossa profissão, determina no art. 6, item II: “Compete ao cirurgião-dentista prescrever e aplicar especialidades farmacêuticas de uso interno e externo, indicadas em Odontologia”. No mesmo artigo, item VIII, acrescenta: “compete ao cirurgião-dentista prescrever e aplicar medicação de urgência, no caso de acidentes graves que comprometam a vida e a saúde do paciente”.
Devemos prescrever sempre que for necessário e estiver indicado perante a saúde do paciente. Mas sabemos que muitos profissionais optam pela prescrição verbal, e isso não deve ser realizado em hipótese alguma, a fim de evitar possíveis confusões, como erros na dosagem e/ou de posologia do fármaco. Além disso, por meio da prescrição, podemos limitar a automedicação do paciente, permitir a inclusão de precauções, orientações e/ou cuidados necessários. Lembrando que a prescrição ainda serve como um instrumento legal em casos de processos jurídicos.
No que tange a segurança durante a prescrição dos anti-inflamatórios e analgésicos, como qualquer outro grupamento de fármacos, pressupõe-se que o prescritor (cirurgião-dentista) tenha conhecimento real de farmacologia quanto ação do medicamento, esquema de administração, via de administração, indicação, contraindicações e uma das maiores taxas de complicações: a interação medicamentosa. Um exemplo citado por Andrade (2014) é a necessidade de empregar o metronidazol (antibiótico prescrito no tratamento de infecções odontogênicas ou periodontais) em pacientes que fazem uso de álcool (mesmo que socialmente). Isso pode desencadear o que chamamos de “efeito dissulfiram”, onde dissulfiram é o medicamento usado no tratamento do etilismo. A ingestão de álcool durante a utilização do metronidazol poderá gerar uma reação adversa, com sintomas como depressão respiratória, arritmias cardíacas e convulsões, podendo causar a morte do paciente.
Local Odonto – De acordo com os princípios éticos e profissionais, como o cirurgião-dentista deve agir quando existe a necessidade de encaminhar o paciente a outro profissional de saúde, antes de qualquer tipo de indicação de medicamentos?
Rodrigo Resende – Não vejo (e não há) qualquer problema neste fato. Devemos ter em mente que nenhum profissional deve assumir total responsabilidade por toda a parte sistêmica do paciente. Embora muitas vezes isso aconteça.
Como mencionado anteriormente, muitas vezes tratamos de indivíduos sistemicamente comprometidos e com patologias diversas e/ou associadas. Essa troca de informações e/ou experiências, além do trabalho multidisciplinar e multiprofissional, só vem a agregar para o profissional e, principalmente para o paciente.
O profissional assistente do paciente deve ser contatado, e a coleta de informações deve ser realizada em conjunto, tentando fazer com que o nosso planejamento seja o melhor possível dentro das limitações sistêmicas do nosso paciente.
Local Odonto – No caso da necessidade de prescrição de medicamentos, qual é a importância do bom relacionamento entre cirurgião-dentista e equipe multidisciplinar envolvida no cuidado ao paciente, caso exista o andamento de algum tipo de tratamento, para prevenir ou minimizar complicações durante o atendimento e pós-atendimento?
Rodrigo Resende – A relação profissional entre o cirurgião-dentista e a equipe multidisciplinar que faz a assistência ao paciente é fundamental.
A escola odontológica moderna vem almejando inserir essa visão mais global nos profissionais que estão indo para o mercado de trabalho.
O cirurgião-dentista não pode mais simplesmente se “trancar” dentro de seu consultório e querer resolver tudo. Devemos lembrar que atualmente houve um aumento na expectativa de vida do brasileiro, onde a média de idade foi de 40 anos para 75 anos, de acordo com o último Censo brasileiro realizado. Com isso, também houve um crescente aumento das patologias sistêmicas e no consumo de fármacos pela população.
Além disso, vivemos em uma sociedade “doente”, onde o estresse e o caos urbano estão fazendo com que jovens façam uso quase que diariamente de benzodiazepínicos, medicação que tem a função de inibir levemente várias funções do sistema nervoso, permitindo uma ação de sedação, relaxamento muscular e efeito tranquilizante.
Se durante a anamnese foi descoberto que o paciente utiliza algum ou alguns fármacos, ou ainda foi notado que o paciente é assistido por outro profissional de saúde, devemos entrar em contato com este profissional, pois, muitas vezes, são “omitidos” alguns fatos importantes e que podem interferir diretamente no nosso tratamento.
Sempre que necessário, é preciso solicitar alterações e/ou modificações no tratamento proposto por outro profissional. Tais alterações e/ou modificações devem ser sugeridas por escrito e com assinatura de próprio punho. Lembrando que este documento deve ser anexado ao prontuário do paciente.
Um exemplo seria a necessidade de realização de uma exodontia em um paciente que faz terapia anticoagulante. Em um passado recente, eram indicados aos pacientes que suspendessem o fármaco por um período antes do procedimento cirúrgico e que retornassem entre cinco e sete dias depois da suspensão. Porém, alguns trabalhos realizados na literatura mundial, como o de Beirne, O. et al., 2005 (“Evidence to continue oral anticoagulante therapy for ambulatory oral surgery”) e Madrid, C. et al., 2009 (“What influence do anticoagulants have on oral implant therapy? A systematic review”) demostraram que em pacientes que recebem terapia anticoagulante com INR menor ou igual a 4,0, as cirurgias de exodontia de rotina ou implantes dentários podem ser realizadas com segurança, sem interrupção ou modificação na terapia, usando medidas hemostáticas locais. A sutura de feridas deve ser reservada para casos de grande extensão do trauma cirúrgico e para quando a hemostasia primaria é insuficiente. Mas, caso isso tenha que ser realizado, o médico assistente do paciente deve ser contatado para a avaliação do risco x benefício da suspensão desta medicação, para evitar possíveis complicações ou danos ao paciente pela paralisação do uso do fármaco de rotina.
Local Odonto – Quais são os cuidados com o uso de fármacos em pacientes sistemicamente comprometidos?
Rodrigo Resende – Os cuidados necessários irão depender da patologia sistêmica que o paciente possui. Muitas vezes esses pacientes com problemas sistêmicos requerem algumas modificações nos cuidados trans e/ou pós-operatórios, fazendo com que o profissional tenha que planejar o que irá executar com muito cuidado. Em determinadas situações, indica-se a solicitação de exames pré-operatórios e estudos prévios da patologia sistêmica. Uma conversa entre o cirurgião-dentista e o médico assistente do paciente pode ser necessária, para trocar informações importantes em relação a necessidade (ou não) de alterações de fármacos ou horários, ou mesmo sobre quais são as limitações ou contraindicações para esse paciente, especificamente na realização do tratamento odontológico.
Um exemplo é o atendimento à gestante, onde nossas preocupações estão voltadas para a prevenção de lesões genéticas ao feto e lesões à gestante. Com isso, algumas modificações são necessárias para a realização do protocolo de tratamento.
Sabemos que, nesse caso, a Food and Drug Adminstration (FDA) possui uma lista com a classificação dos medicamentos com risco fetal em potencial, e o profissional precisa ter conhecimento dessa lista para a escolha de anestésicos ou de um simples analgésico.
É muito importante lembrar que, nessas situações, sempre devemos entrar em contato com o médico assistente para discutir os riscos x benefícios do tratamento odontológico da paciente, assim como a administração e/ou prescrição de cada fármaco.
Local Odonto – Qual é o papel do cirurgião-dentista no uso consciente dos principais antibióticos utilizados na Odontologia?
Rodrigo Resende – Sabemos que uma das principais consequências do uso inadequado de antibióticos é o que conhecemos como resistência bacteriana. Hoje isso tem se tornado um grave problema de saúde pública, fazendo com que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e as agências reguladoras de medicamentos de cada país tenham mostrado uma grande preocupação, visto que esse processo ocorre quando as bactérias resistentes, ou seja, que não foram mortas por determinado tipo de antibiótico, acabem sendo selecionadas e de “difícil combate”.
O que pode facilitar isso é a exposição frequente do paciente com antibióticos, muitas das vezes, sem qualquer indicação clínica.
Com isso, devemos seguir um rigoroso protocolo para sua prescrição. Segundo Hupp, et al. (2015), os antibióticos só estão indicados nas seguintes situações clínicas: linfadenopatias, temperatura corporal maior que 380C, osteomielite, pericoronarite grave e tumefações difusas, onde o antibiótico só deve ser selecionado após a realização da cultura de bactérias e antibiograma, evitando possíveis erros na escolha.
O mais importante é que o profissional possa ter o conhecimento sobre quais são as corretas indicações para a prescrição desse fármaco, e somente prescrevê-lo quanto realmente trará benefícios ao paciente. A necessidade de estudo constante é fundamental para que possamos chegar a isso.
Local Odonto – Na opinião do senhor, qual é a importância de uma política de uso racional de medicamentos na Odontologia?
Rodrigo Resende – Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 50% de todos os medicamentos são incorretamente prescritos, dispensados e vendidos; e mais de 50% dos pacientes os usam incorretamente.
O que podemos ver no dia a dia da clínica odontológica é que o uso incorreto de medicamentos se deve comumente a prescrição não orientada por diretrizes, a automedicação inapropriada e ao uso indiscriminado (muitas vezes incorreto) dos antibióticos. Sendo que esse último item, se dá pelo desconhecimento do profissional sobre as indicações deste fármaco.
É de suma importância que o profissional, caso tenha dúvidas, reveja se realmente há a indicação de prescrição da medicação e se pergunte sobre qual será o benefício dessa indicação para o seu paciente.
Existe ainda a necessidade de atualização constante sobre o tema, pois as descobertas e as mudanças nessa área são contínuas.
Local Odonto – O senhor poderia dar algumas dicas sobre como prescrever medicamentos de maneira segura e ética?
Rodrigo Resende – Claro. Eis algumas dicas.
- Toda e qualquer indicação de uso de medicamentos a um paciente, seja qual for a finalidade, deve ser feita sob a forma de receita, em talonário próprio de receituário.
- Quando realizada a prescrição medicamentosa, pressupõe-se que o profissional tenha conhecimento real de farmacologia quanto: a ação do fármaco, o esquema de administração, a via de administração, a interação medicamentosa e as indicações e contraindicações.
- Não se deve utilizar abreviaturas para designar formas farmacêuticas.
- Após realizar a prescrição, solicite que o paciente faça a leitura.
- Faça receitas apenas de medicamentos de uso odontológico.
Referências bibliográficas
- Malamed, S.F. Manual de Anestesia Local. 60 ed. Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2013.
- Andrade, E.D. Terapêutica Medicamentosa em Odontologia. 3ed. São Paulo: Artes Médicas, 2014.
- Hupp, J.R.; Ellis, M. Edward,T. MIRON, R. Cirurgia Oral e Maxilofacial Contemporânea. 5 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.
- To Err is Human: Building a Safer Health System,1ed. Novembro, 1999.
- Beirne, O. et al., Evidence to continue oral anticoagulant therapy for ambulatory oral surgery. Journal of oral and maxillofacial surgery 63(4): 540–545, 2005.
- Madrid, C. et al., What influence do anticoagulants have on oral implant therapy? A systematic review. Clinical Oral Implants Research 4 (4): 96-106, 2009.
Rodrigo Resende
Cirurgião-dentista. Cirurgião Bucomaxilofacial. Especialista em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial. Especialista em Estomatologia. Mestre e doutorando em Odontologia. Professor de Cirurgia Bucal da Universidade Iguaçu e da Faculdade São José. Professor da especialização de Odontologia para Pacientes Especiais da Universidade Iguaçu e da Orthodontic. Coordenador do Curso de Farmacologia aplicada à Odontologia (CEMOI). Membro do Colégio Brasileiro de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial (CBCTBMF). Membro da Comissão de Odontologia Hospitalar (CRO-RJ).
Contato: resende.r@hotmail.com