Com sorte seremos pacientes especiais

Com sorte seremos pacientes especiais

“Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua”
Nelson Rodrigues

Emprestei de Nelson Rodrigues, considerado o mais influente dramaturgo brasileiro, a frase: “Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua”, para formatar uma frase que reflete bem os desígnios que a vida nos apresenta.

“Com sorte um dia seremos pacientes especiais, sem sorte morreremos antes”. Não adianta ter medo da morte, afinal ninguém fica para semente, mas bem que poderíamos cuidar um pouquinho mais desse nosso bem mais precioso: a vida.

Como será a nossa vida na semana que vem, no próximo mês? Como será nosso futuro? Bem, são perguntas absolutamente impossíveis de serem respondidas, pois mal sabemos do nosso dia de amanhã. Talvez a única certeza que temos é que um dia iremos morrer. Nunca vi ninguém escapar, ainda que os mais espiritualistas digam que existe uma vida melhor depois dessa, mas como diria Vinícius de Morais, precisa vir com certidão passada em cartório do céu e assinado: Deus.

Estou falando isso porque o comportamento humano parece, em sua maioria, não se importar com o dia de amanhã. Não se importa, pois “comigo nada vai acontecer”. Vai, nem que seja se tornar um velhinho ou uma velhinha claudicante que precisa do auxílio de alguém.

Quando vejo o mundo mais preocupado em ter do que ser, olho para a frente e penso: o “ter” acaba, o “ser” fica, e mesmo com todas as intempéries permanece na essência, mesmo com o passar dos anos. Por isso, ao levarmos em consideração nossa efemeridade, como profissional da área de saúde, gostaria de lançar uma reflexão: “estamos mesmo preocupados com os nossos pacientes, ou apenas com o que vamos receber deles?”.

Uma discussão eterna é o quanto auferimos de renda ao final do mês. Seja lá no consultório, seja lá no emprego que trabalhamos. Claro que todo mundo quer ganhar bem, mas quanto é “ganhar bem”?  Ou, quanto seria o valor para nos fazer feliz? Eu já trabalho há alguns anos, e não consigo fazer bem essa conta. Talvez a minha incapacidade contábil não me permita chegar a uma conclusão, sei que consigo pagar as contas no fim do mês, sobra alguma coisa, às vezes nem sobra. Vou até confessar outra coisa, há mais de 20 anos que não sei a minha remuneração mensal.

Outro dia tive uma conversa com um consultor financeiro, ele é pai de um pacientezinho do consultório, atuante no mercado de aplicações, ele me deu dicas preciosas de investimentos, mas ficou estarrecido ao ver que eu não tinha disciplina alguma no controle de entradas e saídas financeiras. Até riu, meio sem graça, ao me perguntar: “mas você não sabe quanto ganha?”. Não, eu não sei. Mas sei que não devo para ninguém.

Fico um pouco perplexo ao ver as pessoas lutando para ter mais, para ganhar mais, para serem mais fortes, mais poderosas. Estranha-me a ganância por bens, dinheiro, ou qualquer outra forma de bem material, esquecendo que o essencial para a vida é bem mais simples e fácil de conquistar.

Tenho trabalhado com “pacientes especiais” há mais de 30 anos. Um amigo, por quem tenho muito carinho, usa uma expressão ao se referir a atenção a esses pacientes: “vamos plantando”. Posso dizer que já plantei, continuo plantando, mas, principalmente, tenho colhido. Tenho colhido sorrisos dos meus pacientes em profusão, tenho colhido amigos sinceros que entendem a importância dessa área da Odontologia e tenho recebido muitas palavras de carinho e o reconhecimento dos pais e cuidadores. Isso não paga a conta do supermercado, mas traz valores impossíveis de serem mensurados por números. Ah, um adendo, sou profissional e recebo pelos meus serviços, e acho que bem justos, que fique bem claro.

Aí eu me pego perguntando: quanto é mesmo que eu recebi no fim do mês? Olho para trás e vejo o tanto que recebi, mas de outras formas, e me divirto ao saber que sou um administrador irresponsável, porém, extremamente responsável para realizar o que me faz bem e para quem.

Quero ter sorte e virar um paciente especial, assim, lá depois dos 115 anos. Se vou chegar lá, não sei, mas vou fazer o possível e impossível para realizar meus sonhos, que não são muitos, mas são plausíveis. Desde que não apareça um “Sobrenatural de Almeida” para puxar meu pé antes do tempo.


jose reynaldoJosé Reynaldo Figueiredo
Cirurgião-dentista. Doutor em Ciências Odontológicas. Mestre em Deontologia e Odontologia Legal. Especialista em Odontopediatria. Especialista em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais. Especialista em Implantodontia. Presidente da Associação Brasileira de Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais (ABOPE). Membro do Conselho e do Comitê de Educação da iADH (International Association for Disability and Oral Health). Membro do Grupo de Trabalho, do Ministério da Saúde referente às “Diretrizes de Atenção à Saúde Bucal da Pessoa com Deficiência no SUS”. Responsável pela “Clínica Sorrisos Especiais”. 

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